A palavra democracia
tem origem grega, é a junção das palavras demo (povo) e kracia (poder). Tendemos
então a acreditar que em uma democracia o povo deve debater suas demandas e
tomar as decisões através da participação coletiva quando os meios
representativos deixam de atender seus interesses, conforme a Constituição
Federal de 1988 deixa claro em parágrafo único, “Todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. As origens do estado
democrático constituem assunto complexo e dispendioso, seria ousadia sintetizar
em poucas palavras o processo inteiro, mas a ideia do artigo é apenas
contextualizar o leitor.
O modelo de democracia
representativa que conhecemos hoje se consolida no século XIX a partir da
revolução dual (Revoluções Francesa e Industrial). Estes eventos levaram a burguesia
ao poder, isto é, o que antes era a vontade do soberano que imperava sobre a
coisa publica respaldado pelo direito divino, passa a ser exercida por
representares burgueses e o interesse é, a partir daí, a proteção da
propriedade e do empreendimento privado. Configura-se assim o quadro que vemos
hoje, onde as estruturas governamentais atendem interesses corporativos e de
oligarquias baseadas nas elites e não nas demandas da população.
O sistema de democracia representativa no
Brasil começa na República Velha (1889 – 1930), ainda sem um sufrágio universal,
e de caráter basicamente elitista. Ao longo da história a democracia brasileira
nunca mostrou ser estável, sempre sujeita a golpes, e seguidas ditaduras.
Percebemos então que o Brasil conheceu tardiamente os conceitos democráticos e
o povo em poucas oportunidades pôde exercer de fato sua soberania e direitos.
Durante a ditadura militar que durou de 1964 até a 1985 o governo se
autoproclamava democrático e dois partidos foram conservados no teatro da
disputa de poder, o ARENA e o MDB. Com o fim do período militar estas legendas
derivaram para as atuais legendas de
direita que são lideranças políticas até hoje nas casas ditas democráticas. A
ditadura termina exatamente no período de consolidação de toda uma estrutura de
comunicação de massa e formação de grupos de mídia corporativos controlados
pelos mesmos antigos oligarcas e empresários gananciosos. Grosso modo, os
velhos caciques continuam se alternando no poder enquanto controlam o fluxo de
informação que formam a opinião pública. A população brasileira se vê - no
período imediatamente posterior a ditadura - com seu senso crítico amarrado a
uma estrutura que manipula a construção de referências envolvidas no processo
de formação de identidades coletivas.
A quem atende o
processo dito democrático que se instaura então no Brasil? As decisões tomadas
pelos representantes - quase que via de regra - atende as corporações e ao
interesse de elites que controlam as mesmas, ou tem um caráter populista
através de pequenas concessões ao povo em claro interesse eleitoreiro. Vemos
campanhas políticas ligadas mais a projetos de marketing do que projetos de
governo.
Em nível global dobramos
os joelhos para o direito divino, dobramos os joelhos para os imperadores, logo
depois para os ditadores, e hoje dobramos os joelhos para uma coisa chamada
mercado. Todas as relações humanas estão atravessadas por essa lógica. As guerras
não são mais por territórios, mas por mercados, uma lógica de consumo ilimitado,
mas com recursos limitados. Quando os grandes negócios passam a ser mais
importantes que as leis, mensurando valor a vida, reduzindo o ser humano a
estatísticas, dígitos binários em uma calculadora, é sinal de que a democracia
representativa precisa ser revista e que o povo possa criar novas estruturas
que passem a incluir o cidadão comum nas decisões que influem diretamente sobre
sua vida. Tais estruturas não existem, e quando existem, não funcionam. E é
nesse ponto que o entendimento de cada um sobre a relação entre realidade atual
e o passado histórico é fundamental. Temos exemplos bem expressivos e atuais de
mobilizações coletivas apartidárias e de grande potência transformadora nos
movimentos de ocupação e contestação do sistema financeiro e da democracia
representativa, que se tornam mais fortes em situações de crise onde os
governos promovem pacotes de austeridade para reverter uma situação de crise,
transferindo para o povo o endividamento de instituições financeiras e cortando
orçamentos de serviços públicos para favorecer, mais uma vez, aquilo que é
privado em detrimento daquilo que é público. O interesse social fica em segundo
plano e os recursos são usados de forma irresponsável; a política
representativa não mais representa os interesses dos cidadãos, se é que alguma
vez já os representou. Vemos o estado-nação fazer às vezes de prostituta do
capital.
O modelo neoliberal tem
como protocolo a redução do Estado ao seu mínimo, em termos de custos e de
intervenção no social. A existência do estado passa a priorizar apenas a
circulação de mercadoria e capital. A carga tributária é, sem dúvidas, proporcionalmente
mais onerosa ao cidadão comum que às corporações. Concomitantemente há um
aumento da violência do Estado, que expressa em números significativos a
criminalização da pobreza e dos já fragmentados movimentos sociais. No Brasil
vemos exemplos dessa prática nas recentes remoções de comunidades para as
Olimpíadas e Copa do Mundo, instalação de Unidades de Policia Pacificadora
(UPP) em comunidades, mas que não vem casada com um projeto de empoderamento ou
integração das mesmas a sociedade. Neste processo, qualquer expressão e hábitos
culturais que fujam ao padrão “civilizado” são reprimidos pelos órgãos do
estado com grande truculência. Outro exemplo é o aumento da população
carcerária, que dobrou entre os anos 2000 e 2010, reforçando o argumento da
criminalização da pobreza, já que a maior parte dos encarcerados são pobres e
quase sempre negros.
Tendo em vista a atual
conjuntura, concluímos que a democracia corre o risco de ser distorcida em seu
conceito original por uma prática perversa que se apropria desse conceito,
subvertendo-o para satisfazer interesses que não são do povo. Faz-se necessária
a ação do povo para recuperar a importância da participação coletiva nos
processos decisórios. Como vimos acima, nossa constituição garante o direito ao
exercício direto da democracia, ou seja, temos poder de legislar, opinar e
construir através de participação direta do povo numa nova democracia,
atualizada sobre o espírito de nosso tempo. Temos aparato tecnológico e
intelectual para tanto, basta que possamos costurar os processos a partir da
participação de todos, local e globalmente. A democracia direta é a única forma
de barrarmos este processo que caminha para extinção daquilo que é humano,
daquilo que é vivo e do esgotamento dos recursos que deveríamos deixar para
gerações futuras. Mas este é um campo de experimentações, não há formulas que
garantam seu sucesso ou planos prontos. Mesmo que ainda não tenhamos descoberto
o caminho que queremos seguir, sabemos exatamente o caminho que não devemos tomar.
Essa é uma longa construção que só podemos fazer juntos e através da
distribuição horizontal do poder.
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